"É tudo de ouvido": a delicada salvaguarda e a valorização das Tunas rurais das serras do Marão e Alvão através do património cultural imaterial

Abstract

Ao longo do século XX, nas remotas aldeias serranas do Marão e do Alvão, foram criadas várias Tunas Musicais constituídas por cordofones dedilhados (violões, banjos ou banjolins e bandolins) e friccionados (violinos e violoncelos), além de flauta ou clarinete. O Toque — termo empregue localmente para designar estas tunas — desempenhava um papel central nos momentos festivos e rituais que pontuavam o quotidiano e a vida social das comunidades locais, além de terem uma função de representação das suas próprias aldeias quando se apresentavam fora. A construção dos instrumentos, a sua aprendizagem e a composição musical eram maioritariamente asseguradas por membros das comunidades, num processo praticamente autónomo, configurando ecossistemas culturais (Moreno 2015; Schippers 2019; Titon 2009, 2009a). Na década de 1950 provavelmente haveria mais de duas dezenas de tunas na região montanhosa que abrange o Marão, o Alvão e a Aboboreira, formadas por jovens. A partir da década de 1960, a crescente emigração, a mobilização de jovens para a guerra colonial e os desenvolvimentos tecnológicos que introduziram processos mecanizados de reprodução musical, redundaram no declínio da atividade das tunas e dos eventos em que estas se apresentavam. Este esmorecimento das tunas e envelhecimento de uma parte dos seus integrantes agravou-se nas décadas seguintes por vários factores demográficos, sociais, culturais, pelas dificuldades na transmissão intergeracional de conhecimentos tradicionais, e pela desertificação das aldeias. Em 2002 foi possível documentar em gravações onze tunas, mas em 2023 apenas cinco mantêm actividade musical. Conscientes do valor patrimonial destes agrupamentos e da urgência da sua salvaguarda, três autarquias da região tomaram a iniciativa de promover o pedido de inscrição das tunas das serras do Marão e do Alvão no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (PCI) de Portugal, encarregando uma equipa do INET-md (Universidade de Aveiro) da realização do respetivo estudo de suporte, com base na metodologia etnomusicológica. Esta comunicação tem como objetivos: (1) apresentar uma reflexão sobre as dificuldades da salvaguarda das tunas e as possíveis estratégias multidimensionais envolvendo os membros das tunas e outros agentes locais que contribuam para a sua sustentabilidade (Cooley 2019; Schippers e Grant 2016; Titon 2009, 2009a e 2015; Turino 2009); (2) partilhar e discutir alguns resultados da investigação em curso, sustentados em pesquisa bibliográfica (Minhava 1984; Neves e Cristóvão 2001; Sardinha 2005), investigação documental (em acervos de tunas, de etnógrafos locais e material de arquivo) e em trabalho etnográfico. Entre outros aspectos propomos fazer uma caracterização das tunas em estudo, no que concerne às suas constituições instrumentais, aos repertórios musicais que interpretam, aos processos de transmissão dos conhecimentos necessários à prática musical e à diversidade de contextos de atuação que enformam a sua atividade.