À procura da mão direita: o caso acusmático da música de piano para a mão esquerda

Abstract

O repertório de piano para a mão esquerda é uma tipologia pianística consolidada em mais de 6000 obras, de 700 compositores, listadas na maior coletânea deste corpus, no site pessoal do pianista Hans Brofeldt (1948). Historicamente, acompanhou o surgimento do piano, através de embaixadores atentos à utilidade pedagógica destas peças e também ao protagonismo alcançado com a sua apresentação em público (Edel, 1994). Figuras como Leopold Godowsky viriam a interessar-se pelos desafios composicionais que o condicionamento ao uso de uma mão implicava (Godowsky, 1935), enquanto outras, como Paul Wittgenstein, ao perseverar na carreira de concertista após perder a mão direita na primeira grande guerra, representaria o combate do compositor/intérprete contra um ideal artístico dominante de beleza e uma visão da deficiência como limitação (Howe, 2010). A literatura académica sobre este repertório mantém-se escassa e esporádica, com uma total ausência de produção no campo da perceção. Pretende-se, pois, abordar esta lacuna respondendo à questão central: quais as implicações da ausência da ação da mão direita na escuta da música de piano para a mão esquerda? A perspetiva adotada assume a condição de que o ponto focal deste repertório é o ato da escuta, ou seja, no sentido de prover completitude à obra, o compositor e o intérprete intendem que a falta aural da mão direita não seja sentida; sobre esta pretensão assentam as consequentes conceções criativas e interpretativas. Por sua vez, para o ouvinte, a sensação de plenitude aural entra em discordância com a ausência visual da ação da mão direita. Assim, estabelece-se o paralelo com a escuta musical acusmática em dois sentidos: a ausência do performer (mão direita); e o desalinhamento entre o visual e o auditivo. Consequentemente, ao escrutínio dos elementos que justificam a identificação da escuta do repertório para a mão esquerda como acusmática, o presente trabalho pretenderá responder às seguintes questões: 1) Que recursos acusmáticos são utilizados em alternativa à ação da mão direita? 2) De que forma o repertório para a mão esquerda se distingue daquele para duas, na perceção acusmática? Espera-se, então, cumprir os seguintes objetivos gerais: A) Compreender o processo percetual que acompanha a performance da música de piano para a mão esquerda; B) Identificar as idiossincrasias do seu discurso musical, assentes na experiência da escuta; C) Evidenciar direções expressivas da perceção musical. Serão analisadas as reflexões sobre a experiência acusmática pelos intervenientes na fundação e legitimação do estilo Música Concreta, que enfatizam a invisibilidade da fonte sonora, na tradição do véu pitagórico que separava o mestre dos alunos iniciantes, os Acousmatikoi, proporcionando uma escuta mais concentrada na informação veiculada (Schaeffer, 1966); e serão aplicados os conceitos de Ventriloquismo (Abbate, 1995) e Acusmaticidade (Kane, 2014) à caracterização da escuta da música de piano para a mão esquerda, que enfatizam a indeterminação da fonte sonora (ibid.) - conceção herdeira de práticas musicais seculares, consubstanciadas na estética romântica do séc. XIX (Cox, 2006), onde se enquadra o nascimento do repertório para a mão esquerda.